sábado, 14 de março de 2009

Rubem Alves: Inúteis e perniciososcolunista da Folha de S.Paulo
Resumindo: os vestibulares são, em primeiro lugar, inúteis. Um leitor,assustado com minha sugestão insólita de que os vestibulares sejamsubstituídos por um sorteio, enviou-me um e-mail em que me acusava deestar trocando um critério baseado na competência —critérioracional, portanto— por um critério baseado na sorte, coisairracional. Mas eu pergunto a você que conseguiu sobreviver à câmara detorturas: o vestibular os tornou competentes em quê?
Marcelo Zocchio
Competência tem a ver com a capacidade de resolver problemas reais,situações tais como elas aparecem na vida. Em que o preparo para osvestibulares o tornou competente? Eu me arrisco a dizer que a únicacompetência que o preparo para os vestibulares desenvolve é... a efêmera capacidade de passar nos vestibulares...
Efêmera, que dura apenas um dia. Tanto esforço, tanto sofrimento, paranada. Pois, como já demonstramos, essa capacidade logo desaparece noburaco negro do esquecimento. A memória é uma função da vida, do corpo.E o corpo não é bobo. Aquilo que não é instrumental para a vida é logo esquecido.
Pense na memória como um escorredor de macarrão. Um escorredor demacarrão é uma bacia cheia de furos. A gente põe o macarrão na águafervente para amolecer. Amolecido o macarrão, é preciso livrar-se daágua. Jogam-se, então, macarrão e água no escorredor de macarrão. A águaescorre pelos buracos, e o macarrão fica. A memória é assim: ela selivra do que não tem serventia por meio do esquecimento. E o que é quetem serventia? Duas coisas, apenas. Primeiro, coisas que são úteis,conhecimentos-ferramentas, conhecimentos que nos ajudam a entender e afazer cois as.
(Note, por favor, que a utilidade é variável. Para os esquimós, éconhecimento instrumental a arte de fazer iglus. Mas esse conhecimento éinútil para beduínos no deserto. Para eles, o instrumental é fazertendas. Conhecimentos que são úteis para as crianças das praias deAlagoas são totalmente inúteis para as crianças que vivem nas montanhasde Minas. Daí o absurdo dos programas que ensinam as mesmas ferramentas,como os nossos.)
A outra coisa que tem serventia são os prazeres. Prazeres não sãoferramentas. Não têm uma função prática. Mas dão alegria. Dão sentido àvida. O corpo não se esquece dos prazeres. Educar, assim, tem a ver comas duas caixas que o corpo carrega: a caixa das ferramentas e a caixados brinquedos. Na caixa das ferramentas, estão os conhecimentos que sãomeios para viver. Na caixa dos brinquedos, os conhecimentos que nos dãorazões para viver.
E eu pergunto: que ferramentas o preparo para os vestibulares lhe deu?Que prazeres? Ao final, o escorredor de macarrão fica vazio —nãohavia macarrão, só havia água.
Mas, além de serem inúteis, os vestibulares são perniciosos, pordeformar a nossa capacidade de pensar. Eu lhe pergunto: o que é maisimportante: saber as respostas ou saber fazer as perguntas? Se você medisser que o mais importante é saber as respostas, eu lhe digo: você jáestá obsoleto ou está a caminho da obsolescência. Porque uma dascaracterísticas do nosso momento histórico é o caráter efêmero dasrespostas. Quem sabe as respostas logo fica sabendo nada.
Pensar não é saber as respostas. Pensar é saber fazer perguntas. Sobreesse assunto, aconselho a leitura do prefácio à "Crítica da Razão Pura",de Kant, em que ele diz precisamente isso —que o conhecimento seinicia com as perguntas que fazemos à natureza. Mas essas perguntassurgem quando nós, contemplando a natureza, nos sentimos provocados por seus assombros.
O início do pensamento se encontra nos olhos que têm a capacidade de seassombrarem com o que vêem. Mas é precisamente isso, os olhosassombrados, que o preparo para os vestibulares destrói. Vestibularessão cega-olhos...
Schopenhauer tem um curto e delicioso texto sobre livros e leitura emque ele diz o seguinte: "Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: sórepetimos o seu processo mental". Segue-se que "aquele que lê muito ouquase o dia inteiro (...) perde paulatinamente a capacidade de pensarpor conta própria" —o que é o caso de muito eruditos, que "leramaté ficar estúpidos".
Coisa semelhante acontece com aqueles que se preparam para osvestibulares: de tanto serem treinados para dar as respostas certas,acabam por perder a capacidade de fazer perguntas, a essência dopensamento inteligente. O preparo para os vestibulares, assim, é umprocesso estupidificador, um mecanismo pernicioso para a inteligência.Acrescente-se a isso o fato de que, devido à fúria da competição, oscandidatos, no seu preparo, são forçados a abandonar tudo aquilo que tema ver com a "caixa dos brinquedos", o que provoca um embrutecimento dasua sensibilidade.
O maior benefício da abolição dos vestibulares seria este: as escolasestariam finalmente livres dessa guilhotina horrenda no horizonte epoderiam se dedicar à tarefa de educar, de desenvolver a arte de pensar,que nada tem a ver com o preparo para os vestibulares.

terça-feira, 10 de março de 2009

Poema: Escevo como Quem Quer se Escrito.

escrevo como quem que ser escrito

uma árvore ou uma pena no centro da frase
um espelho branco onde observo a palavra

e dos seus troncos brotam folhas, letras
inundações de verde no lago azul do céu
que caem, voando, asas de papel

como tu, também eu sussurro
lentas sílabas à leve melancolia que nos abraça

Jorge Reis-Sá

Poema: o som da linguagem.

Por vezes reaprendo
o som inesquecível da linguagem
Há muito desligadas
formam frases instáveis as

palavras
Aos excessos do céu cede o silêncio
as constelações caem vitimadas
pelo eco da fala.

Gastão Cruz